quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Animais. animenos





Na solidão da jaula os bichos se autrofiam. Que desanimaldade! Assim, arrisco: o homem é o antecessor de todos os animais. Ofendo? Que outro ser, portador de alma, é tão sem-respeitoso? Amanhã, em suas fábulas, os bichos narrarão: no tempo em que os homens sujavam o mundo. Passemos aos animais, antes que esgotem:

O polvo, multipérnico, em sua imóvel impaciência. Tentaculista, dono de suas serpentes, quem sabe ele pressente o polvilho da morte, o polvo em transição para o guisado?

Já as lulas, em seus líquidos voos, lembram suas aéreas parentes, as libélulas.

Quem não simpatiza com as gazelas é o Lopes. Pensa que são contra ele, os antílopes.

A avestruz mete a cabeça no deserto. Vá lá ela. Porque homens há que escolhem bem pior: meter o deserto dentro da cabeça.

O piolho, saltitando de contente, esbarra na fivela do cinto do hospedeiro. Do choque vazou-se-lhe a vista. Sem um olho, o piolho já só assina: pi.
Já o outro, bem higiénico: o pirilimpo.

E agora com o SIDA? Coitado do vampiro, viciado nas refeições sanguíneas. Que poderá o pobre quiróptero fazer? Qual a sua quiropção? Pedir o teste do HIV às vítimas? O melhor será, talvez, retirar-se. Vampirar-se.

Avultado nome leva o esquilo que, somado, não chega nem a um quarto de quilo. Recertificado seja seu título: fique o esgrama.
Ao inverso, o hipopótamo. Acertado seria: o hiperpótamo.

A rã que faz cópias? A rã que xerox!

Restem dúvidas, a cor do azul é a água. A um instante, me desvio, submarinheiro. Descubro as algas, álgicas, nostálgicas em seus líquidos canteiros. Regam-se de terra, adubam-se de luz. Suas verdes guelras, os raminhos onde assobiam as ondanias.

O cágado, na caixa de si, tartaenrugado. Corcundarilho, marcha a remo. O cágado é o único que morre já em construído mausoléu.


(COUTO, Mia. Cronicando. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 131-132)

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SIDA – Síndrome de Imunodeficiência Adquirida.
Palavra que desnudo




Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo


                Abril 1981


(COUTO, Mia. Raiz de orvalho e outros poemas. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1999, p. 17)

sábado, 29 de outubro de 2011

Palavras de Mia Couto



“Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte.  A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à Ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.”

“[...] a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo.”

“O segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do cotidiano.”

"Na ciência (como em outras actividades) o mais importante não é o que chamamos científico. É o lado humano. Criou-se a ideia de que o cientista é isento de erro, uma espécie de ser privilegiado que apenas trilha pelos atalhos do rigor e da exactidão. Essa aversão pelo erro é o mais grave dos erros. È tão vital errarmos como acertarmos. Devemos afastar o medo de errar. Devemos o gosto por experimentar, mesmo cometendo falhas. A natureza foi evoluindo graças ao erro básico que é a mutação. Se os genes nunca falhassem não haveria a diversidade necessária para a continuidade da Vida. Os processos vitais exigem, ao mesmo tempo, o rigor e o erro. Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.”

“O que pode suscitar uma pequena história é quanto por trás do cientista reside um homem, com suas ignorâncias, suas incertezas e suas crenças tantas vezes muito pouco científicas.”

“Só se escreve com intensidade se vivermos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos.”

“Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu periferia ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilhas com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. Entendermos e partilharmos a língua das árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros.
Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo. Para escutarmos histórias que nos são, em todo momento, contadas por essas criaturas.”


(Trechos do texto elaborado para crianças lusófonas integradas no programa interescolar "Ciência Viva", Julho de 2004, publicado em COUTO, Mia. Pensatempos. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2005, p. 45-49)

· Projeto “Ciência Viva” (Portugal – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica)  http://www.cienciaviva.pt/home/
· Contos: A Ciência e o Risco
· Texto de Mia Couto (na íntegra):
http://www.cienciaviva.pt/projectos/contociencia/textomiacouto.asp






sexta-feira, 28 de outubro de 2011


No zoo-ilógico


Zoo, ainda aceito. Mas lógico, porquê? As mais das vezes é mesmo ilógico: os animais com ordem de prisão, detidos sem outra legalidade que não seja a prepotência de nossa espécie. O senhor duvida? Então venha por outros olhos visitar o parque.
Desta feita, daremos volta à passarada. Dá pena ver tanta pena subusada. Contudo, os cantares de encanto, os pios e os rodopios, as súbitas colorações, todas essas maravilhas permanecem, resistindo à jaula. Mar, ave, ilhas.

Primeiro, as aves de rapina. Estes majestosos caçadores não merecem tão pejorativa nomeação. No domínio das aves muitas correcções se necessitam, como haveremos de ver.
Comecemos pelo falcão: já viram os olhos, como são felinos? Certo seria chamar-se de falgato.
Já o mocho tem os olhos como as lojas antes do PRE: estão abertas mas não atendem ninguém.

Haverá uma estória de amor, feita de eterno desencontro, entre a ave nadadora, o pinguim, e o peixe-voador.

O macho da catatua: o catateu. Entre guerreiro e palhaço a catatua se assustou com o temor que quer infligir aos outros.
O tucano emitiu o bico em triplicado. Não está pousado num galho mas sobre um cano. Pelo nome se vê que trata o cano por tu, o tucano.
É preciso ter perna para pernoitar. Quem diz é a garça em suas pernaltitudes.
Rectifico o albatroz: alba, sim; atroz, nunca.

O maior da família, a avestruz. É uma ave que não exerce. As asas, desempregadas, quase estão murchas. Alguma coisa deve ter acontecido para Deus lhe tirar o brevet.

De raspão quase o morcego se empassarava. No escuro-fusco, o mamífero aviador se orienta só de ouvido. Desgraça do morcego, então, era ser morsurdo.

Há hierarquia nos nomes. Pássaro não é sinónimo completo de ave. Pássaro é menos que ave, estatuto menor da carreira alada. Da mesma maneira, pluma e pena não são sinónimos gémeos. A pluma é a pena de gala, o traje de cerimónia.

O galo: mais cavalheiro não conheço. Cisca e debica mas quase não come. Oferece o melhor às galinhas do seu harém. Exemplo para os homens que, ao comerem as galinhas, não deixam parte valiosa para as mulheres.

A mais volátil de todas as feras: a atmosfera. Ela é como o coração de certas mulheres: todos nela residem, ninguém lá mora.

O leitão pequeno: o leitinho.

O marisco, primeiro foi mar. Só depois foi isco. Como a amêijoa, no balanço da onda, amenjoada.

O macho da gazela? O gazele. A fêmea do elefante: a elafante.
Ficando nos paquidermes: não será que, de tão enormíssimos, eles em vez de digestão, têm trigestão?

A mais bela cá na área? A canária? Nas artes do chilreio, a maior: a chilrainha. E que dizer da ave que pia e logo se arrepende? É a ave dos arrepios. E ainda de passarada, se diz dos compromissos: antes comprometido que com o peru metido.
E, no fim da volta, mais além, enjaulado, o pelicano. Como ele está magro: é só pele e cano!

A visita findou suas horas. A tabuleta, no fecho da estória, rezava: proibido retirar comida aos animais. Um outro letreiro, virado para o interior das jaulas avisava a bicharada: "não provoque os homens, sua humanização está em curso".
A cidade e o zoo-ilógico: qual deles aprisiona o outro? Ao menos, se isentem de pagamento os bichos quando entenderem visitar os homens em suas urbaníssimas gaiolas, os altos prédios que tanto arranham os céus. 

(COUTO, Mia. Cronicando. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 125-127) 
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PRE: Programa de Reabilitação Económica lançado pelo governo moçambicano em meados da década de 80.





quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sementeira




O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.


Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.


No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.


Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.


Era a vida que ele, nele, desconhecia.


(COUTO, Mia. Tradutor de chuvas. 1. ed. Lisboa: Caminho, 2011, p. 71)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Palavras de Mia Couto



“[...] o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. Para combater pela verdade o escritor usa uma inverdade: a literatura. Mas é uma mentira que não mente.”

“[...] o escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades. E é isso que um escritor é – um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade.”

“O escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e de encantamento.”



(Trechos da intervenção na cerimônia de atribuição do Prêmio Internacional dos 12 Melhores Romances de África, Cape Town, Julho de 2002, publicada sob o título “Que África escreve o escritor africano?”  em  COUTO, Mia. Pensatempos. Textos de opinião. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2005, p. 59-63)








Escrevências desinventosas


Estava já eu predispronto a escrever mais uma crónica quando recebo a ordem: não se pode inventar palavra. Não sou um homem de argumento e, por isso, me deixei. Siga-se o código e calendário das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda, a ordem era perguntosa: “já não há respeito pela língua-materna?”
Não é que eu tivesse intenção de inventar palavras. Até porque eu acho que palavra descobre-se, não se inventa. Mas a ordem me deixou desesfeliz. Primeiro: porquê meter a mãe no assunto? Por acaso sou filho de língua, eu? Se nasci, mesmo inicialmente, foi de duplo serviço genético, obra inteira. Segundo: sou um homem obeditoso aos mandos. Resumo-me: sou um obeditado. Quando escrevo olho a frase como se ela estivesse de balalaica, respeitosa. É uma escrita disciplinada: levanta-se para tomar a palavra, no início das orações. Maiusculiza-se deferente. E, em cada pausa, se ajoelha nas vírgulas. Nunca ponho três pontos que é para não pecar de insunuência. Escrita assim, penteada e engomada, nem sexo tem. Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei muito bem o perigo da imagináutica. Às duas por triz basta uma simples letra para alterar tudo. Um pequeno “d” muda o esperto em desperto. Um simples “f” vira o útil em fútil. E outros tantíssimos, infindáveis exemplos.
Afinal das contas, quem imagina é porque não se conforma com o real estado da realidade. E nós devemos estar para a realidade como o tijolo está para a parede: a linha certa, a aresta medida. Entijole-se o homem com tendências a imaginescências.
Voltando à língua fria: não será o português não está já feito, completo, made in e tudo? Porquê esta mania de estrear caminhos, levantando poeira sem a devida direcção? Estrada civilizada é a que tem polícia, sirenes serenando os trânsitos. Caso senão, intransitam-se as vias, cada um conduzindo mais por desejo que por obediência.
Estraga-se a decência, o puro sangue do idioma. E porquê? Por causa dessas contribuições dispérsicas que chegam à língua sem atestado nem guia de marcha. Devia exigir-se, à entrada da língua, um boletim de inspecção. E montavam-se postos de controlo, vigilanciosos.
Se forem criados tais postos eu mesmo me voluntario. Uma espécie de milícia da língua, com braçadeira, a mandar parar falantes e escreventes. A revistar-lhes o vocabulário, a inspeccionar-lhes o saco da gramática.
Vem de onde essa palavra?
E mesmo antes da resposta, eu, arrogancioso:
Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto.
Os queixosos, nas cartas dos leitores, reclamando. E eu, abusando dos abusos, rindo-me deles. Mas não me divertindo de alma inteira, não. Porque a vida é uma grande fábrica de imagineiros e há muita estrada para poucos postos vigilentos.
Mas, em escrevendo “deter gente” eu me lembro de “detergente”. Sim, escrevo sério. Um produto que lavasse a língua de sujidades e impurezas. Pegava-se no idioma, lavava-se bem, desinfectava-se. Depois, para não apodrecer, guardava-se no gelo, frigorificado.
Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro das margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não acorde poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que, verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada. 

(COUTO, Mia. Cronicando. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 163-165)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A MORTE, O TEMPO E O VELHO

         O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera do que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
         Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direcção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos, se encontra a moradia da morte.
         Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele queria já na outra vertente do tempo.
         Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, com rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
           Esta é a Morte – disse o homem apontando o cão. E acrescentou: – Sou eu que a passeio pelo mundo.
         E você quem é?
Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um no outro, desde sempre. Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os viventes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dar cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da morte:
Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
Vai ser difícil.
Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
Mas eu queria tanto terminar-me!
Impossível, insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou, decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
O que posso fazer por si?
Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças. O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocábulos e encontrar lá os materiais de reanimar o mais perdido fôlego. Urdia seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma porção de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena do que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiu durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
Amanhã vou cumprir o meu mandato – anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo-se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Ma s agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. E sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. Até que lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações – com o risco do arrependimento – ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:
Já matei.
Matou? Matou quem?
Matei o Tempo.
E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:
Agora, leva-me tu a passear!


(COUTO, Mia. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. 3. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 63-66)


Trela, s. f.: correia a que vai preso o cão de caça, conforme Dicionário Priberam da língua portuguesa (Portugal).  
Maleitoso, adj.: que tem maleitas; que causa maleitas (febre intermitente), conforme Dicionário Priberam da língua portuguesa (Portugal).  

O espelho




Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.


Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo, 
com meu súbito reflexo.


A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.


                                 Maputo, 2006


(COUTO, Mia. Idades cidades divindades. Lisboa: Caminho, 2007, p. 18)            

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Epígrafe do livro Estórias abensonhadas, de Mia Couto.


Estas histórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo pensado, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo esse tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.
Estas histórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.

(COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p.7)

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Registramos a informação de que, em 04/10/1992, em Roma, foi assinado o Acordo Geral de Paz, pelo presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, e pelo presidente da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), Afonso Dhlakama. O acordo encerrou a guerra civil que o país atravessou entre 1976 e 1992. Igualmente, nesse ano, as chuvas retornavam ao centro-sul do país após o que é considerado um dos mais longos e devastadores períodos de seca no país. A primeira edição do livro ocorreu em 1984.
O POENTE DA BANDEIRA

          Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo é interino. O céu se vai azulando, permeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto.
         Nesta manhã tão recente, uma criança vem caminhando. Quem é este menino que faz do mundo outro menino? Deixemos seu nome, esqueçamos seu lugar. Dele se engrandece apenas a avó: que o miúdo tem intimidades com o mundo de lá. De quando em quando, a criança lhe estende a faca e pede:
- Me corte, avó!
Para sonhar o menino tinha que sangrar. A avó lhe cedia o jeito, habituada à lâmina como outras mães se acostumam ao pente. O sangue espontava e o mundo presenciava o futuro, tivesse a barriga prenhe do tempo encostada em seu ouvido. Ditos da velha, quem se fia?
Confirmado é que o menino segue por aquela manhã. Seus pés escolhem as pedras, nem precisam dos olhos para se guiarem. O miúdo passa no municipal edifício, o único da vila. Seu rosto se ergue para olhar a bandeira. O pano dança dentro do céu, como luz que se enruga. Um velho coqueiro sem copa serve de mastro. As cores do pano estão rasgadas que nada nele arco-irisca. Os olhos do miúdo pirilampejam de encontro à luz: é quando o golpe lhe tombou. Deflagra-se-lhe a cabeça, extracraniana. A voz autoritarista do soldado lhe desce:
- Você não viu a bandeira?
Tombado no carreiro, sobre as pedras que antes evitava, o menino olha as cimeiras paragens. Um coqueiro lhe traz lembranças litorais. Onde há uma palmeira sempre deve ser inventado um mar, eternas ondas morrendo. Agora, rebatido no repentino solo, o menino estranha ver tanto céu. A pergunta lhe vem pastosa: porquê o chão, tão debaixo dele? Outro golpe, a bota espessa lhe levando o rosto ao encosto da terra. Fica assim, pisado, sem outra visão que a da areia vermelha. Seu pensamento se desarruma. Palmeira, palma do mar, onde o azul espeta suas raízes. Pergunta-se, com as devidas vénias: e se içassem não a bandeira mas a terra?
Ceda-se o turno ao mundo. A voz lhe chega, baixada como um chicote:
- Você, miúdo, não aprendeu respeitos com a bandeira?
Sente o sangue escorrendo, a bota do soldado ainda lhe dói uma última vez. Como pode saber ele os procedimentos exigidos do vigilante? Mas o soldado é totalmente militar: está só cumprindo ignorâncias, jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um lei-de-fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, tão sem pedrinhas que os pés nem tinham que escolher. Um caminho que dispensava toda bandeira. À medida que o soldado desfere mais violência, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em, redor esfria e a luz tomba de joelhos. É, então.
Sucede coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. Fluvial, o pano migra para outros céus. No momento, se vê o quanto as bandeiras roubam aos azuis celestiais.
Mas o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o presságio. Porque, no seqüente instante, a palmeira se despenha das suas alturas fulminando o soldado, em clarão de rasgar o mundo em dois. Sobem confusas poeiras, mas depois a palmeira se esclarece, tombada em assombro, junto aos corpos.
A árvore estava já morta, ainda houve o dito. Poucos criam. A crença estava com a avó, sua outra versão: o tronco se desmanchara, líquido, devido à morte daquela criança. Vingança contra as injustiças praticadas contra a vida. De se acreditar estavam apenas aquelas duas mortes, uma contra a outra. A palmeira sumiu mas para sempre ficara a sua ausência. Quem passe por aquele lugar escuta ainda o murmúrio das suas folhagens. A palmeira que não está conforta a sombra de um menino, sombra que persiste no sol de qualquer hora.

(COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7.  ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 69-73) 
 
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Neblinublado, adj. enevoado pela neblina (de neblinado + nublado), conforme CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: brincriação vocabular. Lisboa: Mar Além/ Instituto Camões, 1999, Colecção Mar Profundo, n. 1, p. 172.
Luzinhento, adj. que faz luz; luminoso (de luzinhar), conforme CAVACAS, 1999, p. 150.
Permeolhável, adj. permitindo o olhar (de permeável + olhável), conforme CAVACAS, 1999, p. 183.
Arco-iriscar, v.intr. ter riscas com as cores do arco-íris (de arco-íris + riscar), conforme CAVACAS, 1999, p.35.
Pirilampejar, v. intr. brilhar como pirilampo ( de pirilampo + lampejar), conforme CAVACAS, 1999, p. 186.
Carreiro, caminho estreito, atalho, HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. [Rio de Janeiro]: Objetiva, 2009.
Cimeira, ponto mais alto, cume, topo, conforme HOUAISS, 2009.


domingo, 23 de outubro de 2011

(Escre)ver-me






nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

                    Fevereiro 1985 

(Mia Couto. Raiz de orvalho e outros poemas. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1999, p. 60)

CHUVA: A ABENSONHADA


            Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?
            Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.
            Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas: 
            – Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato? 
            – Mas, Tia Tristereza: não está chover de mais?
De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.
Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a punição das cheias?
Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:
Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.
            E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.
            – Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.
            – Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?
            Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:
            – A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique ...
            Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?
            A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:
            – Tristereza, tira o meu casaco.
Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

(COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 57-62)




Indaguava, v. tr.: indagar empenhadamente [enquanto chove], perguntar-se [em relação à chuva] (de indagar + aguar), conforme CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: brincriação vocabular. Lisboa: Mar Além/ Instituto Camões, 1999, Colecção Mar Profundo, n. 1, p. 135-136.

Cantarosa, adj.: a cântaros, com grande intensidade (de cântaro + copioso), conforme CAVACAS, 1999, p. 55.
Ganga: tecido forte de algodão, geralmente trama de dois fios, antigamente fabricado na Índia e, inicialmente, usado em uniformes de trabalhadores; mais tarde, se vulgarizou na confecção de vestuário para jovens (jeans):; também denominado de denin.
Descortinado, adj.: descoberto, desprotegido, aberto (de cortina), conforme CAVACAS, 1999, p. 83.
Rezas, cerimônias realizadas na casa do régulo ou soba da aldeia.
Murmurrindo, v. tr.: murmurar com ironia (de murmurar + rir), conforme CAVACAS, 1999, p. 169.