sexta-feira, 28 de outubro de 2011


No zoo-ilógico


Zoo, ainda aceito. Mas lógico, porquê? As mais das vezes é mesmo ilógico: os animais com ordem de prisão, detidos sem outra legalidade que não seja a prepotência de nossa espécie. O senhor duvida? Então venha por outros olhos visitar o parque.
Desta feita, daremos volta à passarada. Dá pena ver tanta pena subusada. Contudo, os cantares de encanto, os pios e os rodopios, as súbitas colorações, todas essas maravilhas permanecem, resistindo à jaula. Mar, ave, ilhas.

Primeiro, as aves de rapina. Estes majestosos caçadores não merecem tão pejorativa nomeação. No domínio das aves muitas correcções se necessitam, como haveremos de ver.
Comecemos pelo falcão: já viram os olhos, como são felinos? Certo seria chamar-se de falgato.
Já o mocho tem os olhos como as lojas antes do PRE: estão abertas mas não atendem ninguém.

Haverá uma estória de amor, feita de eterno desencontro, entre a ave nadadora, o pinguim, e o peixe-voador.

O macho da catatua: o catateu. Entre guerreiro e palhaço a catatua se assustou com o temor que quer infligir aos outros.
O tucano emitiu o bico em triplicado. Não está pousado num galho mas sobre um cano. Pelo nome se vê que trata o cano por tu, o tucano.
É preciso ter perna para pernoitar. Quem diz é a garça em suas pernaltitudes.
Rectifico o albatroz: alba, sim; atroz, nunca.

O maior da família, a avestruz. É uma ave que não exerce. As asas, desempregadas, quase estão murchas. Alguma coisa deve ter acontecido para Deus lhe tirar o brevet.

De raspão quase o morcego se empassarava. No escuro-fusco, o mamífero aviador se orienta só de ouvido. Desgraça do morcego, então, era ser morsurdo.

Há hierarquia nos nomes. Pássaro não é sinónimo completo de ave. Pássaro é menos que ave, estatuto menor da carreira alada. Da mesma maneira, pluma e pena não são sinónimos gémeos. A pluma é a pena de gala, o traje de cerimónia.

O galo: mais cavalheiro não conheço. Cisca e debica mas quase não come. Oferece o melhor às galinhas do seu harém. Exemplo para os homens que, ao comerem as galinhas, não deixam parte valiosa para as mulheres.

A mais volátil de todas as feras: a atmosfera. Ela é como o coração de certas mulheres: todos nela residem, ninguém lá mora.

O leitão pequeno: o leitinho.

O marisco, primeiro foi mar. Só depois foi isco. Como a amêijoa, no balanço da onda, amenjoada.

O macho da gazela? O gazele. A fêmea do elefante: a elafante.
Ficando nos paquidermes: não será que, de tão enormíssimos, eles em vez de digestão, têm trigestão?

A mais bela cá na área? A canária? Nas artes do chilreio, a maior: a chilrainha. E que dizer da ave que pia e logo se arrepende? É a ave dos arrepios. E ainda de passarada, se diz dos compromissos: antes comprometido que com o peru metido.
E, no fim da volta, mais além, enjaulado, o pelicano. Como ele está magro: é só pele e cano!

A visita findou suas horas. A tabuleta, no fecho da estória, rezava: proibido retirar comida aos animais. Um outro letreiro, virado para o interior das jaulas avisava a bicharada: "não provoque os homens, sua humanização está em curso".
A cidade e o zoo-ilógico: qual deles aprisiona o outro? Ao menos, se isentem de pagamento os bichos quando entenderem visitar os homens em suas urbaníssimas gaiolas, os altos prédios que tanto arranham os céus. 

(COUTO, Mia. Cronicando. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 125-127) 
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PRE: Programa de Reabilitação Económica lançado pelo governo moçambicano em meados da década de 80.





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